quarta-feira, 4 de abril de 2007

Prescrição...

Prescrição, prescrição só em Braga e... por um canudo!


No dia 26 de Maio do presente ano, foi publicada uma notícia no Jornal “Tal & Qual”, segundo a qual a empresa de distribuição de água - Agere -, de Braga, decidiu cobrar aos consumidores dívidas que remontam a 1995 e que correspondem a quantias da ordem dos 150 mil euros.

Os consumidores, por sua vez, recusam-se a pagar as quantias em dívida, alegando para tal que já prescreveram e invocando o artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, que à prescrição se reporta.

A Agere, por seu lado, invoca que tais dívidas se mantêm e que são exigíveis, já que os consumidores não pagaram os seus consumos.

Tendo presente os factos, cumpre emitir os seguintes esclarecimentos legais:

Existe aqui uma prestação de serviços públicos essenciais, os quais são regulados pela Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que consagra uma série de mecanismos destinados a proteger o consumidor / utente de serviços públicos, os quais, segundo o diploma, se cingem ao fornecimento de água, de gás e de energia eléctrica, após a exclusão das telecomunicações, móveis e fixas.

O consumidor em vista é “a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo”. O consumidor, neste passo referenciado, exorbita do que o artigo 2.º n.º 1 da Lei do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho) consagra: “é todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Segundo a Lei 23/96, ou Lei dos Serviços Públicos Essenciais, o “prestador do serviço deve proceder de boa-fé e em conformidade com os ditames que decorram da natureza pública do serviço, tendo igualmente em conta a importância dos interesses dos utentes que se pretende proteger”.

Além de que há um especial dever de informação que impende sobre o prestador de serviços, o qual deve prestar todas as informações sobre as condições em que o serviço é fornecido.

O problema da cobrança indevida por parte da Agere prende-se com um problema de interpretação sobre a natureza da prescrição prevista no n.º 1 do artigo 10.º, que especifica que “o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.

Se, por um lado, a prescrição para os consumidores da Agere tem natureza liberatória, para a administração da Agere, a prescrição tem uma natureza presuntiva, interpretação que faz toda a diferença.

Perante isto, cumpre fazer a distinção entre estas figuras.

A prescrição liberatória (ou negativa) “é uma forma de extinção de um direito pelo seu não exercício por um dado lapso de tempo fixado na lei, e variável de caso para caso”, segundo os ensinamentos de Ana Prata, in Dicionário Jurídico.

Ou, em outras palavras, é aquela que é destinada essencialmente a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor - Manuel de Andrade, in Teoria Geral, II, pág. 452.

A prescrição presuntiva é aquela “em que as obrigações a que se refere costumam ser pagar em prazo bastante curto e que não é costume exigir quitação do seu pagamento”, conforme Vaz Serra, in RLJ, 109.º - 246.º.

Perante a diferenciação das figuras, podemos entender os motivos que levam a que o advogado da Agere invoque que as dívidas dos seus utentes não estão vencidas, só assim acontecendo “se o pagamento não for exigido quando a factura não é paga”, o que foi feito na altura, acrescentando que “se assim não fosse, qualquer cidadão deixaria de pagar e, ao fim de seis meses, fazia novo contrato sem que nada lhe sucedesse”.

De facto, para a administração da Agere a apresentação da factura interpela o consumidor/utente a pagar, e se isso não acontecer cabe à Empresa provar que efectivamente esse pagamento não foi realizado, conforme o artigo 344.º n.º 1 do Código Civil: cabe ao credor provar que o crédito não foi satisfeito.

Entende a mesma que o artigo 10.º n.º 1 da Lei dos Serviços Públicos Essenciais se refere apenas à apresentação das facturas correspondentes ao serviço prestado.

Este entendimento das coisas já foi adoptado pela nossa jurisprudência, destacando-se o Acórdão da Relação do Porto, de 28 de Junho de 1999, onde se diz que a prescrição do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 é presuntiva, e assim, provando-se que o devedor não pagou, este terá de satisfazer o seu crédito ao credor, podendo somar-se os juros de mora.

Este acórdão, por sua vez, foi objecto de um parecer do Prof. Calvão da Silva, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que deitou por terra quase todos os argumentos utilizados pelo citado Tribunal.

Este entendimento é também o do Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 10-12-2003, definiu que “é de seis meses o prazo da prescrição extintiva e liberatória que a nova lei, a Lei n.º 23/96, artigo 10.º n.º 1, de 26.07, estabelece agora para o credor da prestação de serviços públicos essenciais, como o são os serviços de fornecimento de água, gás e telefone, exercer o direito de exigir o pagamento do preço daquele serviço”.

Segundo este Professor e o entendimento que deve ser adoptado do artigo 10.º da Lei referida, é o de que a prescrição tem natureza liberatória.

Assim, “ao declarar que prescreve o crédito, a nova lei não pretende somente estabelecer uma presunção de pagamento, mas determinar que a obrigação civil se extingue subsistindo a cargo do devedor apenas uma obrigação natural”. Em rigor, “a obrigação não se extingue, mas somente o meio de exigir o seu cumprimento e execução (...)”.

Pelo que, se a obrigação de pagar as facturas da água não for voluntariamente cumprida, o direito de exigir judicialmente o pagamento do preço deixa de existir.

Para além disto, o prazo de seis meses vem substituir o de cinco anos previsto no artigo 310.º, alínea g) do Código Civil, que diz que prescrevem no prazo de cinco anos “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.

Este prazo de prescrição tem uma natureza liberatória, fazendo extinguir a obrigação a que se encontra ligado, e convertendo-a em obrigação natural. Tal prazo tem como fundamento evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos.

Os consumidores de água de Braga podem recusar-se fundadamente ao pagamento das dívidas e opor-se ao exercício dos direitos prescritos, pois o que subsiste apenas é uma obrigação natural, cujo cumprimento não é judicialmente exigível.

Além disso, o prazo de seis meses da prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido, o que equivale a dizer que se torna exigível no termo de cada um dos períodos a que corresponde uma factura autónoma.

Calvão da Silva acrescenta que no n.º 1 do artigo 10.º deveria ler-se, depois do que já foi explanado:

“O direito de exigir judicialmente o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação mensal, data da exigibilidade da obrigação e da possibilidade de exercício do direito”.

Por fim, há que acentuar que a figura da prescrição é um instrumento que faz jus ao Princípio da Protecção dos Interesses Económicos do Consumidor, que nos surge no artigo 9.º n.º 1 , onde se lê:

“O consumidor tem direito à protecção dos seus interesses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos”.

Além de que o Governo deve “adoptar medidas adequadas a assegurar o equilíbrio das relações jurídicas que tenham por objecto bens e serviços essenciais, designadamente água, energia eléctrica, gás, telecomunicações e transportes públicos”, conforme o artigo 9.º n.º 8 da Lei do Consumidor.

Concluindo: a prescrição prevista no artigo 10.º é liberatória e os utentes de consumo de água da Agere não devem pagar qualquer quantia à empresa, já que as dívidas cujo pagamento exige, não podem ser judicialmente exigíveis.

Se o forem, cabe ao consumidor arguir na contestação a excepção de que se trata (vide, artigo 489.º do Código de Processo Civil), já que o juiz não pode suprir de ofício a prescrição, consoante o artigo 303.º do Código Civil, que diz:

“O tribunal não pode suprir, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público”.

Se o consumidor não invocar a excepção, que leva à absolvição do pedido, por muito estranho que pareça, vai ser coagido a pagar. O que é um contra-senso...


Alice Conde
Julho.2006

1 comentário:

Anónimo disse...

Thanks :)
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